Linhas soltas, asas rasgadas

Freedom is just chaos with better lighting.

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Local: São Paulo, SP, Brazil

quinta-feira, maio 31, 2007

História

Asilo Magdalena

Inácio e Jacinta dormem em quartos separados, mas vizinhos. Manhã nascendo, em seus respectivos passeios pelo jardim (sol para os ossos, reumatismo) os dois trocam olhares gordos que prometem mundos. Coração disparado de adolescência selvagem. À noite, depois da novela, cada qual vai para sua cama de solteiro, e felizes se encontram em sonhos.
Inácio é viúvo. Tanto tempo que nem sente falta daquela mulher que agora é pó. Tinha um hálito azedo e mania de limpeza. Mas cozinhava bem, a pobre. Morreu dormindo.
Jacinta nunca havia se casado. O namorado de jovem, bem valente e pavio curto, foi para a guerra e não soube voltar. O coração da solteirinha se apagou. Viveu dando aulas.
Filhos casados, Inácio escolheu sua nova casa. Tia falecida, Jacinta sem companhia se escondeu no asilo. Ambos voluntariamente instalados, passaram a sentir o ciclo dos remédios e gelatinas de um calendário quase imutável. Cronograma não muito complexo, não muito interessante.
Num primeiro encontro, Inácio e Jacinta se estudaram. Rugas familiares, mas seriam mesmo? Íris dos olhos se reconhecendo. Cada um lembrava o primeiro amor do outro. Vagamente. Possível que fosse engano, coincidência assim só nas histórias que se conta de outras pessoas. Mas preferiram acreditar que sim; que não era encontro, mas reencontro.
Assim, as semanas se arrastam e os olhos lânguidos se procuram todo dia, mas se cruzam vez ou outra. Pena. Querem mais. O relógio urge, não há o que se perder. Inácio e Jacinta fingem jogo de damas para planejar a consumação da paixão e em seguida fuga. Feito. Sorriem.
Lua no céu, Inácio deixa seu quarto. Cabelo penteado, malinha em punho. Jacinta esperando, febril. Ansiedade que exigiu três quatro comprimidos.
Batidas na porta. Trouxe flores, muito gentil. Entra no quarto e se abraçam. Deitam na cama, bem juntos, plano de aguardar até meia-noite. Os pés de Inácio estão frios, os de Jacinta já quentes. Aninham-se. Sim, agora está bom. Só se for pra você, ela brinca. Riem.
Pombinhos de asas abertas que se acolhem. Jacinta suspira, guardando na sua a mão do amado. Inácio pensa no futuro acompanhado, bala de hortelã derretendo na boca. Sem querer adormecem.
Manhã alta, despertam sacudidos por enfermeiros. Os dedos entrelaçados são separados à força. Agora, quem crê que o plano falhou por completo não calcula a teimosia de um amor antigo. Inácio e Jacinta ainda hão de se casar e ter muitos filhinhos. Todos têm direito a seu viver felizes para sempre.

segunda-feira, maio 28, 2007

Shepard

from the high high grass
to the edge of the blacktop playground
I see you studying me

I see you when you don't know I'm looking
and every look I steal
adds a day to my life

lately you've been hard to catch
or else I'm getting older
one of us is losing for sure

(Sam Shepard - 11/6/81
Homestead Valley, Ca.)

terça-feira, maio 22, 2007

Voilà

Singing Butler, de Jack Vettriano

Bordado

A chuva
Fome fria
Devora secura
Que era terra
Tece as poças
Dois caminhos
Em desnível
Desvia quedas
Pede passagem
Fio invisível, rio
Prende as coisas
Todas vivas
À margem

quinta-feira, maio 17, 2007

Pequim

Porque não sei contar. Quatro anos, não aprendi, e os olhos da mãe me encaram nervosos. Os números de um a cem, meu problema sem solução. Difícil demais memorizar tanta coisa, quando ainda nem posso rabiscar meu próprio nome.
Mas que precisa ela que eu saiba contar? Não basta agora, criança, saber quem sou e a quem pertenço? Uma parte desse corpo, mulher, que me pôs a morar com meus avós. Eles, que jamais me deram teste tão injusto. Nem me condenam. Também eles não sabem contar.
Raiva fervendo, levanta a mão e bate. Não cuida a força, a pele minha que se rasga fácil. As manchas crescem na fragilidade dos ossos magros. Teria efeito pedir que não machucasse? Mas continua. Ela, que deveria ser mãe. Dor sem nexo, até a inconsciência.
Meus braços já não se movem. Ainda respiro. Tenta me trazer de volta, mas quase não desejo voltar. Por quê, se não me quer? Prefiro deixar que coloque as mãos em torno da minha garganta. Mãos que talvez um dia me tocaram com ternura, talvez nunca. Hoje, preocupada com as contas do hospital e essa sujeira e com o pai, que ficaria bravo, nem suporta passar os dedos pelos meus cabelos. Aperta as mãos e assim sufoco até a morte.
Depois carrega e joga o embrulho no lixo, junto aos ratos e restos.
Eu, que respirava, não mais. Porque não sabia contar.

(Texto escrito como exercício para a oficina Viagem Literária no b_arco. Inspirado em uma notícia que li ontem, e que ainda agora me deixa chocada)

terça-feira, maio 15, 2007

Aprendendo


I never make stupid mistakes. Only very, very clever ones. (John Peel)

sexta-feira, maio 11, 2007

Maravilha

Não, não está frio. Minha cabeça não dói. Nem sei o que são cólicas (tpm, alguém? damn!) E aquele nariz escorrendo de gripe? Nem pensar. Fico admiravelmente bem estando só, em silêncio. Meu namorado já me ligou e disse que me ama. Meus amigos estão todos ao meu lado agora. O computador funciona como jamais se viu. A net ainda não caiu, aleluia. Meu francês se torna fluente da noite para o dia. O papa vai embora e as pessoas param de buzinar porque o trânsito não anda. Minha colega de apt resolve lavar a louça, só pra sair da rotina. Eu ganho um milhão de euros num concurso literário e faço planos de ir morar no Tibet.
Se tudo é mesmo assim, então tá.

quinta-feira, maio 10, 2007

Esse frio!


quarta-feira, maio 09, 2007

Para hoje

O esmagamento das gotas

Eu não sei, olhe, é terrível como chove. Chove o tempo todo, lá fora fechado e cinza, aqui contra a sacada com gotões coalhados e duros que fazem plaf e se esmagam como bofetadas um atrás do outro, que tédio. Agora aparece a gotinha no alto da esquadria da janela, fica tremelicando contra o céu que a esmigalha em mil brilhos apagados, vai crescendo e balouça, já vai cair e não cai, não cai ainda. Está segura com todas as unhas, não quer cair e se vê que ela se agarra com os dentes enquanto lhe cresce a barriga, já é uma gotona que pende majestosa e de repente zup, lá vai ela, plaf, desmanchada, nada, uma viscosidade no mármore.
Mas há as que se suicidam e logo se entregam, brotam na esquadria e de lá mesmo se jogam, parece-me ver a vibração do salto, suas perninhas desprendendo-se e o grito que as embriaga nesse nada de cair e aniquilar-se. Tristes gotas, redondas inocentes gotas. Adeus gotas. Adeus.

(Histórias de cronópios e de famas, de Julio Cortázar)

quarta-feira, maio 02, 2007

Lighten up


terça-feira, maio 01, 2007

Para mim

Eu quero dizer os nomes das pessoas que me fazem sofrer, em alto e bom tom. Eu quero que elas realmente me façam muito mal, para que eu deixe de ser estúpida e me apegar a elas. As pessoas se aproveitam de quem tem o coração aberto. As pessoas são maliciosas e tratam os imbecis como devem ser tratados. Eu quero poder gritar pra ensurdecer meus malditos vizinhos e colocar pra fora toda essa raiva acumulada. Vinte e cinco anos de submissão e continuo abaixando a cabeça. Eu quero que as coisas aconteçam de forma segura e ordenada, longe dos imprevistos horrendos que me assustam tanto. Um ou dois segundos de paz, daquela que existia quando eu era sozinha e não me importava com isso. Não quero ter que esperar por uma coisa que nunca vem. Essa é a história da minha vida.


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