Linhas soltas, asas rasgadas

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quinta-feira, julho 07, 2005

Bloqueio Criativo Temporário

(Mas Aparentemente Irreversível)

“Há quase um ano não escrevo.
Pesada, a meditação
Torna-me alguém que não devo
Interromper na atenção.
Tenho saudades de mim,
De quando, de alma alheada,
Eu era não ser assim,
E os versos vinham de nada.”
(Fernando Pessoa)


Escrevo. Quem sou eu? Uma criança recém nascida, talvez. Aquela que vem ao mundo com o frescor de uma doce manhã primaveril, ingênua para a vida e abrindo os olhinhos curiosos a um mundo que parece ansioso para devorá-la (embora ela disso não saiba).
Ou sou a enfermeira que permanece parada ao lado dos berços de um dos quartos na maternidade ensolarada, imaginando como seria bom ter filhos (uns dois ou três, quem sabe) se seu namorado resolvesse finalmente pedi-la em casamento. Mas só Deus sabe o quanto o pão custa caro nos dias de hoje, e o aluguel não é barato também.
Mas posso ser o deputado federal que votou pelas leis de ajuste no preço da farinha de trigo, ocasionando por tabela o aumento da fome no país inteiro, para famílias inteiras. Uma tremenda responsabilidade, que poderia ser apelidada de culpa, parcial ou não.
Ou ainda, sou o jovem e idealista repórter que descobriu a corrupção do tal deputado, o qual se utilizou de um pequeno desvio de verbas para garantir suas férias nos Alpes suíços. Repórter este que, mesmo sonhando em ganhar o Pulitzer em uma bela noite estrelada, nunca vai conseguir superar sua própria mediocridade.
Posso ser ainda a adolescente sonhadora que olha para aquelas mesmas estrelas contempladas pelo reporterzinho, pensando em seu amor distante (que ela não sabe se corresponde a seus sentimentos, mas de quem não consegue afastar o pensamento). A garota que vai ter ainda muitos amores, embora nenhum tão puro, e mais tarde desistirá de relacionamentos duradouros para concentrar-se na promissora carreira de atriz.
E sou também o diretor com o qual a atriz há de fazer seu primeiro filme, que arrancará dela a atuação que lhe garantirá um Oscar como coadjuvante. Um cineasta que não faz nada além de um punhado de escolhas para uma equipe de trabalhadores verdadeiramente esforçados, e que ainda assim é a pessoa a receber todo o crédito nas críticas do jornal.
Ou posso ser o leitor do caderno cultural do tal jornal, aquele que vai alegre a espetáculos de teatro regularmente, que paga seus impostos sempre em dia e lê também todas as páginas de esporte do jornal em questão, inconformado com o fato de que seu time caiu para a segunda divisão logo agora que o campeonato brasileiro prometia ser tão empolgante.
Mas minto, na verdade sou aquele senhor de idade que torce para o time oposto, o vitorioso. O velhinho pacífico, já sem família, é daqueles que ainda escuta os jogos de futebol em seu fiel radinho de pilhas, mesmo perigando sofrer um enfarto ao primeiro gol do adversário. Ele que não gosta de computadores, é veterano da Segunda Guerra, e fã de Marilyn Monroe.
Ou então posso ser o melhor amigo do velhinho, que apostou todo o dinheiro que possuía em corridas de cavalo nos anos 60. Depois disso separou-se da noiva, largou a faculdade de Direito e passou aproximadamente três anos no sofá de sua sala bebendo conhaque ao som dos Beatles, o que fatalmente ocasionou sua morte prematura aos 36 anos de idade.
Não, melhor ser o dono do bar que vendia (e ainda vende, ainda que mal) o conhaque assassino e outros venenos. Um homem um tanto quanto amargo, separado há tempos da moça argentina que o traiu enquanto ele esteve doente dos rins, durante a ditadura militar.
Por fim, hei de ser a cigana cartomante que leu em seu baralho a triste sina do marido traído. Uma mulher lendária que, diz-se, hoje alcança com grande vigor os duzentos anos de idade, e passeia tranqüila pelas ruas da Europa a vender respostas, visões, premonições... e algumas varetinhas de incenso. A mesma velhinha enrugada que continuará por lá prevendo o destino de vagabundos, bêbados, amantes e trovadores sem rumo.
E com tudo isso, ou apesar de tudo isso, não sou nada nem ninguém além de um poeta maldito, perdido em um mundo grande demais para tão poucas idéias. Um pensador que já não pensa. Um escritor que já não escreve. E que se esconde (de si mesmo?) sob o codinome de Alberto Caeiro. Fantasma trêmulo que se abriga na própria falta de versos. Na sombra pesada das palavras jamais escritas.

2 Comments:

Blogger Ferdibrand said...

Este comentário foi removido por um administrador do blog.

1:30 AM  
Blogger Ferdibrand said...

Crônica de uma pausa anunciada? Estavas indo tão bem, Katinha, fiquei com vontade de ler mais. :) Até escrever eu finalmente consegui, não sem alguma inspiração advinda dos teus últimos posts, admito. :)) Aparece por lá, já dei o pontapé inicial!

1:30 AM  

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