Linhas soltas, asas rasgadas

Freedom is just chaos with better lighting.

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terça-feira, março 04, 2008

Conto publicado*

Mãe

Então me largaram sozinha em casa. Já não me preocupo com isso, somente quando dói. O filho hoje não dá pra contar, esses dias como se morasse na casa do namorado. Os tempos são outros. Uma vez chorei na sua frente e se assustou. Não sei se você lembra, mas hoje é feriado no Brasil. Coloco a chaleira no fogão e não sinto minha mão nem parte alguma deste corpo. Parou de doer e agora dorme.
Meu conforto, pesadelos sem ter que ir pra cama. A televisão ligada, nem assim sou capaz de ver. Controle cai no chão e quebra. Presto mais atenção nas sombras que fazem quadrados na parede, luz nascida no poste da rua. E ninguém faz nada a respeito. Sempre assim nesta casa. Antigamente eu tinha que aceitar com mais facilidade.
O marido lembra de avisar que está no bar com o primo. Dócil, eu me esforço e acredito que sim. Vai dormir em casa? Não se sabe. Talvez fosse o caso de cometer suicídio esta noite, se apenas pra quebrar a rotina. Ele, cuida que já morreu há tempos, por detalhe esqueceu de cair. Todo dia aquele cigarro na mão e a vontade de largar tudo.
E ele fala amor como se fosse o pão francês comprado na esquina. Qual valesse nem dez centavos. Também, nunca fui além da vontade de me agarrar nessa tábua de salvação. Na minha situação, qualquer uma. O mar sempre tão pequeno.
Nunca escolhi ser dona desta casa, nem importou meu querer. Na época, a mãe aprovou o casamento. Pudesse voltar, destino empresária. Dona da própria vida, para o inferno com os outros. Mulher não tem escolha, disse a mãe. Agora isso.
Eu, ponto no meio de coisa nenhuma. Pouco a declarar, mas o imposto de renda insiste. Tenho quadros pendurados na parede. Cadeiras de vime e bebidas com rolhas fechadas. Ainda tenho família, e para quê?
Faltou pensar no almoço de amanhã. Daqui a duas semanas é o meu dia.
No mapa da Via Láctea, uma flecha aponta: você está aqui. Mas o grão que sou eu já não conta números no universo. Segue desnorteando, no deserto da espera por um abraço que falhou em vir. E mesmo viesse, bem duvido que acabasse satisfeita.
A chaleira apita. O chá está pronto, a ser servido em um minuto.

*Menção Honrosa no VI Prêmio Escriba de Literatura.


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