Linhas soltas, asas rasgadas

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sexta-feira, dezembro 22, 2006

Noite insone

O veículo faz uma curva acentuada na estrada sacolejante. Prova de que estamos mesmo no terceiro mundo, se é que existe um primeiro quando a classificação não diz respeito à qualidade real das coisas, e quando a vida por aqui às vezes vale muito mais do que qualquer avanço tecnológico em terras espanholas ou laboratórios austríacos. Mas o veículo, vai ele pela estrada íngreme do interior de mais um dos muitos estados que acrescentam seu colorido ao mapa geográfico deste país.
A jovem mulher na segunda poltrona à direita fecha os olhos e se pergunta pela enésima vez quando chegará ao seu destino. Lembrando que o destino também é outra coisa deveras relativa, levado em conta seja o fato de que existe um certo livre-arbítrio no mundo e cada um supostamente decide seu caminho de acordo com o passo que deseja dar. Há outros que acreditam em linhas traçadas e etc, mas estes seguramente não sabem do que estão falando e decerto inventam que são destinados (não raro a grandes feitos) apenas para dar algum sentido a uma existência que, sabe-se bem, é feita de puro acaso.
Mas a mulher, que embora jovem já se vê que não se trata de menina, estando ela nessas idades de quase pronta a casar e ter suas próprias meninas (ou meninos, conforme convém a quem quer que seja o responsável pela distribuição - arbitrária ou não - das propriedades humanas aos seres que ainda hão de vir). A mulher se move no desconforto acumulado durante as tantas horas passadas dentro do veículo agoniante. O transporte coletivo, embora ecologicamente aconselhável, nunca foi seu preferido. Em especial para viagens demasiadamente longas, como esta há de se revelar.
Mais longa ainda se torna, tendo a jovem deixado para trás, agora há quilômetros de saudosa distância, aquele a quem já ousa chamar (ainda que secretamente, devido a seu espírito por demais reservado)... Pois bem, deixou aquele a quem chama em seu coração de amor. Foi-se o corpo pelos caminhos afora, mas ficou com ele (ou nele?) o pensamento. E lá permanece.
O rapaz careca a seu lado se acomoda melhor na poltrona. Menos mal que não tenha quase se movido durante toda a jornada. Pois é comprovado que não se dorme com tranquilidade quando a pessoa que lhe acompanha fica a remexer-se ininterruptamente no banco que por si só já é um horror para as costas. Apesar de que, para a jovem mulher, de qualquer modo o sono é impossível aqui.
Não muito longe, somente um par de poltronas além, um bando de crianças birrentas que não foram capazes de se calar a noite inteira. Ou talvez deva-se falar das mães, que não foram capazes de lhes fazer silenciar. Notando-se que é verdadeiramente um grande pecado submeter os pobres pequenos ao sacolejar contínuo das diversas horas de claustrofobia tortuosa pelas quais é preciso passar para enfim chegar ao tal ponto final. Quem é que sabe quando acaba?
Pensa nossa jovem que o inventor do teletransporte (doce sonho de um futuro iluminado onde tudo, ou quase, viria a ser possível) estaria certamente sujeito à canonização, devido aos imensos benefícios futuramente prestados à humanidade perante tão valorosa invenção. Pensa nisso, a mulher, para distrair momentaneamente sua mente arteira, tão ocupada se mantém a projetar lembranças de um punhado de tardes de sol e calor intenso. Faz um pouco de frio agora, mas certeza que isso nada mais é do que um ar-condicionado mal regulado.
A mulher, que a cada minuto se parece mais com aquela garota tímida que foi há não tantos anos atrás, suspira sozinha e volta a fechar os olhos que para sempre sonham em ser verdes (proeza que na verdade só conseguem vez ou outra, quando há luz em excesso). Encontra-se ela atrás de uma senhora gorda, a qual mastiga ruidosamente seu lanche noturno (cujo cheiro causa náuseas a quem, desafortunadamente, está sentado pelos arredores). O barulho das crianças impossíveis de serem controladas continua, dentro do veículo em movimento constante.
Uma porção de sonhos confusos inspiram o sono dos demais passageiros. Mas a mulher, a jovem que tem um alguém com quem se ocupar, não dorme. Parte disso porque nunca encontra uma posição que possa chamar de confortável, parte porque quando sua mente trabalha em tal ritmo não existe botão que a desligue para descanso, e finalmente porque já vem o dia com seus braços luminosos de aurora quente. E a manhã que desponta é o presságio da viagem que em breve se finda (ou o quão breve possa ser o passar de mais algumas horas intermináveis nesta ampulheta brincalhona de areias lentas). E assim, pára o veículo.
Há muita surpresa no ar quando a jovem coloca os pés para fora e se vê não no lugar onde teoricamente deveria chegar, mas de volta ao local de onde veio. Uma mera impressão passageira? Então esta era a ida ou era a volta? Seu amor a espera e não está mais tão longe, agora justamente o contrário. Está tudo invertido, e no entanto tudo certo. A mulher, exultante.
Por fim, pára o veículo. A mulher acorda. Pela primeira vez conseguiu adormecer durante o percurso. Sonhos confusos, de fato, inspiram o sono dos passageiros deste ônibus. Vontades que só encontram sua realização num futuro murmurado entre sorrisos fugazes, porque o agora é pegar as malas e ir até a casa dos pais, abraçar seus queridos e deixar suspenso (temporariamente) um sentimento mal começado que tem poderes jamais vistos de interferir também nos sonhos muito bem sonhados.
A volta há de vir, a seu tempo.

1 Comments:

Blogger Yan Pinheiro said...

katitinha,
sou seu fã! Já falei isso, mas é pq vc se supera a cada texto....beijos

Yan

3:52 AM  

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